O primeiro âmbito da cidade dos homens iluminado pela fé é a
família; penso, antes de mais nada, na união estável do homem e da mulher
no matrimônio ( Papa Francisco, in Lumen Fidei, 52).
Costuma-se dizer que a família é espaço de intimidade e de
ternura. Certamente é também lugar de vivência profunda da fé, nesse mesmo
clima de delicadeza. Em família se acolhe o dom da fé.
Nem sempre podemos dizer que, em família, se respira
clima com ar de bondade carinhosa. No mundo inteiro, de modo particular nas
grandes aglomerações humanas, há estresse e violência que penetram o espaço das
famílias. Desnecessário provar esta afirmação. Fazemos a experiência do cansaço
e de um estado de inquietação interior que preocupa e que leva a todos a um
estado de não identidade com sua realidade mais profunda. Há o estresse
no trabalho, no trânsito, da vida que, em casa, se traduz em violência, reações
abruptas e rudes, falta de efetivo e carinhoso interesse de uns pelos outros. A
vida é agitação que impede o cultivo da intimidade. Há sempre barulho, muito
barulho, barulho fora de nós e em nosso interior. Há assaltos, palavras
violentas, palavras indecorosas, gestos violentos, aviões que destroem as torres
nova-iorquinas, gente assassinada, assaltada, aviltada, atropelada… gente
assassinando, assaltando, aviltando, atropelando. Há ruídos dos sons dos
carros, dos aparelhos sonoros, tudo impedindo a intimidade. Nos bailes e
baladas, os sons e as cores ensurdecem e ofuscam e onde fica a terra da
intimidade? Nem sobra mesmo lugar para uma demorada e prazerosa intimidade com
o Senhor, que deseja empurrar a porta de nosso coração e entrar em nossa
interioridade.
Há violências em família, resquício de um tempo de machismo
em que o homem imperava tolamente, não conseguindo resultado algum a não ser o
da pouca afeição e experimentando a médio prazo a sensação de ter fracassado
como esposo e pai. Há casamentos que aconteceram sem liberdade. Há filhos ainda
que são violentamente espancados no seio da família, que deveria ser templo da
ternura. Há filhos que são esquecidos mesmo convivendo com pai e mãe. Muitas
famílias não vivem a ternura da intimidade.
(...)
Necessário se faz aprender a gramática da intimidade e da
ternura. Tudo começa muito simplesmente: saber prestar atenção no outro, nos
outros, mormente naqueles que estão mais perto de nós.
Cultivar a intimidade é criar uma biografia a mais vozes.
Será necessário conhecer o outro, conviver com o outro, escutar o outro, falar
ao outro, sonhar juntos, cantar juntos, chorar juntos, observar a beleza do
filho que cresça e as rugas fundas no rosto do pai que envelhece antes da hora.
Viver a intimidade é viver a hospitalidade. O cotidiano
cinzento, as dificuldades de toda sorte não podem impedir que as pessoas venham
a perder o encantamento de umas para com as outras. Há uma novidade a
ser descoberta a cada instante e em cada história. Não podemos catalogar
seres humanos com etiquetas definitivas.
Tudo precisa começar no coração. As raízes da pessoa estão
precisamente nesse íntimo mais íntimo que é o coração, essa interioridade das
interioridades que necessita de silêncio, de cultivo e de serenidade.
O que alimenta nossa vida é sabermos presenteados com a
presença dos outros e cumulados de suas carinhosas atenções. Precisamos
sentir que pertencemos uns aos outros, que não existimos soltos no tempo e no
espaço. A forma mais elementar de amor é o mútuo cuidado. O amor será sempre
uma intensificação do relacionamento pessoal, um cada vez nos sentirmos amigos
uns dos outros.
Não é tão fácil entrar na intimidade de alguém. A intimidade
é universo complexo. No dizer de um autor é um castelo que tem muitos cômodos,
nem todos de fácil acesso. O entrar na intimidade de alguém demanda muito
cuidado. O outro precisa permitir nossa entrada e os que entram não se
buscam a si mesmos, mas querem viver com, conviver. Ninguém gosta
de ter sua privacidade invadida. Abrimos o coração a quem nos conquista. Não
aceitamos que alguém empurre a porta de nossa intimidade para nos subjugar.
Família, espaço de intimidade e de ternura, mas não
fechamento, não de intimismo doentio. Precisamos de famílias abertas e nada de
um “familismo” burguês. Há a intimidade dos esposos, do carinho que
os envolve, das conversas que trocam e da entrega dos corpos e dos
corações. Há a intimidade dessas conversas de pai com filho, esses
passeios de mãos dadas ou de mãos no ombro do outro. Há essa festa do encontro
num parque, no canto de uma sala ou no lusco-fusco de uma capela. Há essa
refeição partilhada, alegre, expressão de festa no interior do coração. Há esse
aniversário do vô e da vó com mãe-benta, bolo de nozes e chocolate. Há vidas
que se confiam a vidas. E no meio dessa delicadeza e ternura aparece o Deus da
ternura, esse Jesus que se revela aos pequenos, que arranca de nós, na
intimidade do lar, atos de entrega e de fé. Esse Deus que bate à
porta e pede hospedagem.
Frei Almir Ribeiro Guimarães
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